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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais


"Nem sempre os meus olhos contemplam aquilo que desejam ver, o que lhes apraz o coração, a contemplação traz a dor nua e crua, sem fuga para o êxtase. Êxito? Será esse o perdão? Ver-se a si mesmo naquilo que pensamos que não somos?"

Bela-fera, fera-bela; a miséria pode provocar nobres sentimentos, fazer o belo se sentir feio.

Um encontro decisivo; a bela moça rica e acomodada, provocada pela imagem do mendigo desdentado, questiona a própria existência e é acometida por forte compaixão - a palavra já diz: com paixão - para uma outra realidade possível: "... Não. O mundo não sussurrava. O mundo gri-ta-va!!!! 
Pela boca desdentada desse homem...", ou ainda: "Como é que eu nunca descobri que também sou uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha..."

Ela que sempre tivera as coisas facilmente à mão, apesar de não ter seguido seu chamado na vida, que era cantar, ou qualquer coisa que o valha, tinha a sorte de nascer rica e não passar dificuldades como a fome... mas sua riqueza não a dignificava e ela sentia fome de viver.
Ela e o mendigo estavam zerados; aos dois faltavam oportunidade, perspectiva e fé.
Afinal, como diz o final do poema:

Não teremos nunca escolha diante do crucial, da crueza da vida

Somos o que somos
Adormecidos ou acordados
plenos ou aturdidos
Dispersos ou abraçados"

Clarice Lispector

O que eu não quero dessa vida é passar fome de vida. 

terça-feira, 5 de junho de 2012

Autopsicografia

"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração."


Fernando Pessoa

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Eu quero uma noite feliz

Eu quero uma noite feliz dentre tantas tristes, ter uma invasão noturna e uma visão que excite. Um romance aberto, quase sem frescura, quero amargurar as bênçãos que me estupram. Eu quero sentir que meus segundos pesam, seja num cinema ou num boteco estéril; quero que a esquina seja um mero prédio, e que meus pertences sejam mais eternos. Quero que meu sexo seja fugido, quero amanhecer e me encontrar distante, ficar na penumbra não ligar de onde, quero que ninguém saiba onde se esconde. Preciso de beijo no intervalo mudo, criar um criado momento de tudo, quero que o meu sangue seja de uva pura, e queira ser passado pelas linhas duras. Quero amor à noite e café na varanda, quero trabalhar para sair distante, quero voltar tarde e saber que não pode, quero sacanagem, madrugada forte. Preciso de vida para os meus desejos, quero mais desejos para os meus gracejos, saber que além do meu peito estende-se perfeita uma linha tênue que define o tempo. Quero extrapolar as regras societárias, desestruturar as telhas operárias, provar que o mundo não é para todos, que para a carona o que não falta é louco. Vejo o motorista a cruzar a rua, vejo o imbecil que pouco sabe e atua, sinto seu desprezo e depois me lembro que meu campo é outro, meu silêncio é ouro. Ouço estardalhaços, baixo meus instintos, gritam na minha cara e eu quieta lembro que não sou de nada, que estão todos certos, pois meus objetos não se compram retos. Preciso sair aos campos de batalha, deitar nas trincheiras e pintar a cara, não tenho mais lenha para ver faisqueiras, quero mais incêndio nessa minha campeira.