Beijar o próprio ombro e sentir os olhos marejados sem nem mesmo saber poque. Mas qualquer palavra minha aqui vai diminuir um segundo de atenção às dele, que nos brindou com a melhor definição que já li para a sede de viver um grande amor. Me retiro, então. 
"Preciso
 de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas 
carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a
 bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora 
de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito 
pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim 
Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que 
ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas. 
      Preciso 
de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a 
contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu
 amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao 
lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a 
percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade 
insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar 
sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta
 como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a
 concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, 
apenas porque te estendo a minha mão.
      No meio 
da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto -
 preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos 
que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa
 e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra
 vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista
 e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, 
tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um 
Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer 
um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num
 outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de 
ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de 
instantes enganosos transitórios - que importa?
      Mas finjo
 de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, 
responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que 
nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)
      Preciso 
sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto 
minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de 
Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um 
beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer 
nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser 
conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu
 beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no
 couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os 
antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não 
tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do 
outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, 
outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e
 lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para 
continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas 
guardada em você que eu não conheço.
      Tenho 
urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. 
Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza 
que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. 
Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você 
agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não 
lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível 
treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer 
eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse 
verdade, como se fosse ontem e amanhã."
Caio Fernando Abreu 
 
 
Demais.
ResponderExcluirCB.