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quinta-feira, 29 de março de 2018

Empatia

Hoje eu gostaria de trocar uma ideia com meus companheiros brancos. Aqueles que compartilham das mesmas origens que eu. Que lembram das histórias contadas por seus avós, das músicas que cantavam enquanto faziam a travessia nos navios, trazidos ao Brasil por um sentimento comum a tantos povos que aqui chegaram: a esperança. 

Tantos, menos os africanos. Eles também embarcaram em navios e vieram ao Brasil. O sentimento, porém, não era de esperança, era de medo. Haviam sido vendidos para brancos donos de terras. Não eram mais seres humanos, tinham virado mercadorias. Por que começaram a ser tratados assim? O que tinham feito? Nada. Um pouco de melanina a mais, talvez, era o que os diferenciava. As histórias que os avós dos descendentes desses povos compartilharam com seus netos não foram bonitas e inspiradoras, mas de terror. Eles não queriam vir para cá, mas não tiveram escolha. Mercadorias não têm vontade própria. Por muitas vezes, nas longas travessias oceânicas, recusaram comida. Preferiam morrer de fome a enfrentar o que viria pela frente. Mas não havia essa opção. Eram obrigados também a isso. Como? Por meio de paus que empurravam o alimento garganta abaixo. Foi daí que surgiu a expressão "a dar com pau". Conhece?

Mas voltando a história dos nossos ancestrais. Muitos deles vieram para cá pois ouviram falar que o governo brasileiro estava distribuindo terras para quem tivesse interesse em desbravar regiões ainda inabitadas. Soma-se a isso o fato de muitos estarem fugindo da guerra. Esperança! E lá se foram, aqueles corajosos! Derrubaram árvores, foram picados por cobras, ficaram longe de suas famílias, conheceram a pobreza, a fome e a exaustão de um trabalho pesado e infindável. Foram semanas inteiras e fins de semana trabalhando debaixo de sol, e aos poucos conseguiam ir juntando uns trocadinhos para garantir o futuro dos filhos.

Essa historinha se assemelha um pouco à dos nossos irmãos africanos. Eles também derrubaram árvores, foram picados por cobras, ficaram longe de suas famílias, conheceram a pobreza, a fome e a exaustão de um trabalho pesado e infindável. Porém, se estivessem cansados e se recusassem a fazê-lo, apanhavam. Também emendaram fins de semana trabalhando. Sob cortes de chibatadas. Sob tortura. Com algemas e correntes. Amarrados a tronco. Aliás, sempre houve muita criatividade no desenvolvimento das armas dos senhores - brancos - para castigar e manter o controle sobre suas "mercadorias": cepo, vira-mundo, gargalheira, máscara. Pesquise esses nomes, você vai se surpreender. Se tiver coração é possível que chore. Muitos (mas MUITOS) morreram nesse processo, é claro. E também é evidente que ninguém se importava. O prejuízo seria do branco que pagou pela "mercadoria". Os que sobreviviam tinham que conviver com a humilhação de, após terem finalizado o trabalho debaixo de porrada, ouvirem que foi um serviço ruim. Ou, nos dias de hoje, "serviço de preto". Familiar? Se não conhece essa, talvez conheça a expressão "dia de branco", ou "dia de quem efetivamente trabalha".

Após várias gerações de luta, enfim, nós brancos conseguimos - não sem muito trabalho árduo e honesto - triunfar. Conquistamos o respeito de nossas comunidades, com quem compartilhamos nosso sucesso, com quem colaboramos e concordamos, pois nos protegemos, nos apoiamos, nos elegemos para cargos públicos que garantam a manutenção dos direitos que conquistamos. Somos respeitados em nossa igreja, onde vamos uma vez por semana para agradecer as bênçãos que recebemos. Nossos filhos estudam. Se forem desprovidos de inteligência, damos a melhor educação básica, fundamental e pré-vestibular: pegamos as vagas de educação superior gratuita. Se ainda assim não der, arrumamos um contatinho legal, pagamos pela vaga da faculdade. Se não for o caso, temos empresas e terras, podem ser patrões lá. Se não der também, podem pegar nosso dinheiro e abrir seus negócios. Vai ganhar dinheiro, filho, vai ganhar o mundo. Vai fazer intercâmbio, vai viajar, vai mostrar como você é bem apessoado e esperto pro meu amigo te contratar. Vai casar com uma pessoa da mesma religião e ascendência que a nossa. E, de preferência, de mesma classe social. Não vá se envolver com esse povo "pé na cozinha". Não fosse a doméstica - que de branca não tem nada - nos roubar e não limpar nossa casa direito, tudo estaria perfeito.

E no meio de toda essa alegria, nossas mulheres às vezes dizem, brincando: "não sou tuas nega!". Já ouviram? Pois é. Que sorte a delas. Porque "as nega" só eram chamadas assim por serem propriedade - de papel passado, como já mencionado - de homem branco. Usadas para satisfazer desejos sexuais. Estupradas. Quando eles bem entendessem. Mas só serviam para isso. Afinal, tinham "cabelo ruim", eram pretas, imagem "deNEGRIDA". Nunca, jamais, esses homens cogitariam se casar com elas. Chega a ser engraçado imaginar isso. A negra era "o pecado". Sua cor, a "cor do pecado", como repetimos até hoje. Vontade própria? Oi? MAS, finalmente, depois de TREZENTOS anos (não, não é força de expressão) de genocídio e barbárie, que quase ninguém se preocupou em registrar, e por isso pouco aparece nos livros de história, veio a alforria.

Calma, pausa. Vamos dar um tempo ao lado "negro" da história. Vamos falar de coisa boa. Vamos falar de nós, que temos uma história mais fofinha. Ah sim, estava contando sobre o momento em que chegamos ao ápice. Ou melhor: quase. Ué, não podemos querer mais? Lutamos tanto todos os dias! Não somos vagabundos para nos acomodarmos. Mas uma coisa sim nos incomoda: corrupção. Não entendemos muito bem porque falam tanto de direitos fundamentais, cotas, igualdade... Um mimimi do cacete. Povo reclama demais! Está tudo como devia estar. Inclusive essas empregadas já estão se achando demais! Agora têm a pachorra de não aceitar um emprego se o salário for baixo. Absurdo. Outro absurdo é a corrupção, como dissemos. Tudo, menos nosso dinheiro e nossa honra! Pagamos impostos! Lutamos por um país justo, onde possamos produzir mais e mais e mais e mais, explorar a natureza mais e mais e mais, e ganhar mais dinheiro, EM PAZ. Sem interferência de ninguém, nem do Estado, nem desses ativistas que não fazem nada da vida, muito menos desses ecochatos que ficam defendendo mato e índio. E gente, agora defendem até bandido e favelado. Precisa falar tanto da morte de uma pessoa? Não morrem uns quinhentos por dia nesse país? E o homem branco que morreu assaltado essa madrugada? Você viu? Poderia ter sido um de nós!!!!!!!!

Voltando no tempo: ALFORRIA!! - Ok, conseguiram o que queriam. Agora vazem daqui, seus preto fedido! - Mas pra onde eu vou, se não tenho dinheiro? Onde vou morar, o que vou comer? Poderiam nos dar um pedaço de terra para plantarmos? Meus avós e pais também eram escravos, não deixaram nada pra nós. Como vamos estudar, entrar na faculdade? Mal conseguimos nos alimentar. - Não pediram tanto por liberdade, então se virem! E pronto. Assim surgiram os primeiros moradores de rua. E os primeiros assaltos. E a violência aumentou. - Nossa, dizíamos nós brancos, mas que coisa horrorosa no meio do Rio de Janeiro esses pretos caídos na rua! E ainda assaltam a gente! Precisamos resolver isso. Pretos, subam pro morro!!! Se escondam e fiquem quietos. E assim se fez.

Bom, voltando a nós. Eu estava dizendo que nós queremos zero corrupção. Mas nós também queremos uma arma. Vocês já repararam como está a violência? Esses bandidos são perigosos! E pode ver, são tudo preto. Não pagam imposto e exigem direitos! Pior, usam nosso imposto pra sobreviver que nem reis na cadeia. Precisamos poder matá-los quando tentarem roubar nossos bens, quando tentarem entrar na nossa casa confortável e quentinha. Afinal, bandido bom é bandido morto. E também queremos que esse povo que enfeia as ruas, esses craquentos, sumam pra qualquer lugar que nós não sejamos obrigados a ver. Aproveitem e levem as bicha e as sapatão. Nós respeitamos essas perversões, façam o que quiserem, até temos amigos que são, mas precisa fazer na nossa frente?! Nós brancos somos trabalhadores honestos que pagamos nossos impostos. Vocês são mimizentos que defendem bandido. Em vez de reclamar, porque não fazem alguma coisa?

Minha resposta para você, companheiro de cor branca, é simples. Sabe quando falam de dívida histórica e você não entende nada? É disso que estão falando. Sabe quando falam de direitos iguais e você não faz ideia do que seja? É isso. Sabe quando falam de OPORTUNIDADES iguais e você não se dá conta? Pois é. Sabe quando uma multidão se revolta porque uma militante líder e representante negra morreu? Também vem daí. Essa morte é culpa da dominação branca e machista que ainda existe aqui. Os atos se repetem, percebe? As expressões se repetem, reparou? O preconceito é latente, está vivo, você alimenta ele T O D O S O S D I A S. O descaso pela vida dos negros não mudou. E com a execução de Marielle isso se escancarou. Por isso está acontecendo o que você chama de "comoção descabida". Entenda: não é apenas uma morte, é o que essa morte representa. A mesma voz que disse "Vazem daqui" essa semana gritou: "Mulherzinha preta sapatão, quem é você na ordem do dia? Não ouse nos desafiar, não desça do morro. Não fale, não denuncie, não lute. Sua cor nunca importou, seu gênero é fraco. Você não vê que eu sempre fiz o que quis com você? Cale-se agora, se não quiser morrer." E ela não se calou.

Eu não tenho direito de falar em nome de nenhum afro-descendente. Mas posso falar com você, porque eu sei o que nós vivemos. Você, companheiro branco, tem privilégios SIM. Você tem sorte! E nós nunca vamos chegar nem perto de sonhar o que é ser negro em um dos países mais racistas do mundo. Então, se você não quer se juntar a mim e ouvir o que eles têm a dizer, se não está disposto a compreender seu ódio pelo que fizemos, se não está disposto a abrir seu coração por quem passou TREZENTOS anos em condições desumanas, e que sofre consequências que não temos como mensurar até hoje, se não pode baixar a cabeça e aceitar que eles têm direito a sentir RANCOR, mas além disso, ESPERANÇA que nossos avós sentiram, então pelo menos não fale sobre o que não sabe. Se não sente empatia suficiente para entender que eles podem e querem ocupar os mesmos lugares que você já ocupa faz tempo, receber o salário que você recebe faz tempo, ser olhado com respeito como você sempre foi, não ser revistado ou seguido por seguranças num shopping como você nunca foi, estar nas mesmas universidades onde você estudou, então ao menos, por respeito, permaneça no mais absoluto SILÊNCIO.

#MARIELLEPRESENTE



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