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sexta-feira, 17 de abril de 2020

A fenda

Naquele dia eu já sabia, e hoje me foi confirmado. Eu estava presa em uma fenda entre o tempo e o espaço. Com ela. Era um tempo contado e interminável. Se estendia pela imensidão do firmamento, tal e qual sua matéria-prima. Receios envolventes, borboletas no estômago, fúria contida. O desassossego pacífico do querer.

O trem estava cheio, mas que engraçado: tanta aglomeração, e ninguém existia. Éramos só nós - estávamos absolutamente sós. Presas pela tão raramente celebrada distância que separa os cantos dessa cidade. Esse lugar onde tantas vezes, antes do nosso encontro, sonhei morar. Mais uma estação. Não era a nossa. Ufa. Outro mergulho num universo desconhecido estava permitido. Eu descobria ela. E com ela eu sentia o prazer de estar longe, bem longe, do mundo.

Se foram dez ou mil passos até o apartamento dos nossos amigos, não sei. Sei que flutuamos, e havia luzes no caminho. Algumas partiam dos arranha-céus, num contraste aos faróis dos antigos carros a abrigar sisudos - ainda que polidos - taxistas ingleses. Outras vinham de seus olhos e sorrisos. E me cegavam brevemente. Era ali? Algo me dizia sim. Havia uma cadência, daquelas que embalam o desejo à beira da consumação. Mas segui.

Chegamos e, não fosse o aroma da culinária indiana, a bolha talvez não tivesse resistido. Palavras em um idioma desconhecido. Quão amável? Mais um suspiro distante da lucidez. Um sopro em meus ouvidos repetiu: é uma fenda. Era sim. E aproveitei esse hiato na nossa existência para notar seus dedos. A cor dos seus cabelos. Apreciar as palavras que ouvi de sua boca; algo que não volta mais.

A rachadura aos poucos se fechava. O rasgo na realidade chegava ao fim. Não nos beijamos, não nos tocamos. Mas naquela brecha entre o tempo e o espaço, eu sei, fui sua. Fui sua nos cafés de Roma, nas ruínas de Cusco. Dividindo a vista da aurora boreal, embriagadas pelas ruas da Jordânia. Em cada canto daquela casa, no vagão que nos levou de volta. Fui sua em todos os lugares desta e de outras dimensões por uma fração de segundo que até hoje se repete em alguma galáxia. E nesse instante breve e eterno, nesse espaço estreito e desmedido, eu sei que ela também foi minha.



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