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sábado, 18 de abril de 2020

"Mas nem todo homem..."

Por que as frases "mas nem todo homem é assim" e "feministas culpam todos os homens pelo estupro, menos o estuprador, e colocam ele como o coitadinho da sociedade" são vazias?

Porque a epistemologia feminista (que, vale ressaltar, está sempre em transição) não é uma análise de CPFs. Não estamos falando de você, amigx. Nem do José, do Pedro, do Leonardo. Não se trata de indivíduos, e sim de um sistema, chamado patriarcado. Um sistema que você, ou o José, o Pedro e o Leonardo, e eu também, alimentamos todos os dias, de diversas formas.

Esse sistema veio de caravelas para a América, há aproximadamente 500 anos. Serviu como ferramenta de dominação, a partir do racismo, criado aqui. Uma elaboração de conceitos de "humano" (branco) e "não-humano" (não branco), usada pelos colonizadores para justificar as barbáries cometidas contra povos originários e africanos.

A partir dessa dominação, se desdobram as questões de gênero. Para demonstrar poder sobre outro homem, estupra-se sua mulher. Comportamentos considerados femininos, quando praticados por homens, são punidos. Mulheres não possuem direitos e são propriedade de seus maridos. Comportamentos e classificações étnicas e de raça são usados para o estabelecimento de "categorias" de mulheres: aquelas consideradas apenas para lazer e prazer, as que não merecem respeito devido aos seus comportamentos, as que se estão de acordo com as regras sociais e podem entrar na fila do casamento, e assim por diante.

Objetos. Sob diferentes transversalidades e níveis de opressão. E qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência.

Mas aí quando o José, o Pedro e o Leonardo nascem, a gente ouve: "mas coitados, gente, eles não têm culpa. O José virou um estuprador porque é doente, mas o Pedro e o Leonardo? Homens de bem. Castrem o José! Pronto. Não é genial?"


Não. Primeiro porque se o José estupra, não é porque ele é doente. É porque a sociedade está doente. E por meio dela, o José aprendeu, através de símbolos, linguagem e representações, o ensinamento ancestral de que mulher é objeto e, não só que ela precisa ser vulnerável em relação a ele, mas que ele só será considerado e respeitado como homem se impuser respeito sobre ela, muitas vezes a partir da violência. A partir disso, entende-se que o respeito que se deve a ela está relacionado a comportamento, vestimentas e espaço, e ele precisa controlar tudo isso a fim de manter sua masculinidade em dia. Afinal, ensinaram a ele que ela existe para servi-lo. Ou seja: castrar o José, meu amigo, não vai fazer ele parar de estuprar. No máximo, vai fazer ele arrumar um cabo de vassoura. Porque estupro não é sobre prazer: é sobre exercício de poder.

E aí vem o Pedro, que está a um passo de virar José. Ainda faz piada de mulher, compara sua esposa ao seu carro, colocando-a como objeto e posse, vai à missa de mãos dadas com a namorada mas puxa ela pelo braço com força numa discussão, humilha homens que reproduzem comportamentos considerados femininos, passa a mão ou beija sem consentimento na balada, categoriza mulheres de acordo com seu comportamento, vestimentas ou espaço que estão ocupando. Ele faz isso sozinho? Não. As pessoas riem das piadas machistas dele. Ninguém se mete quando ele perde o controle com a namorada. A sociedade reverencia e aplaude, porque é a mesma que criou José.

E tem Leo, o santo. "Como vocês têm coragem de apontar o dedo pra mim? Eu, que ajudo a trocar as fraldas das crianças, que lavo a louça!" Bom, primeiro que não foi pra você, Leo. E segundo: que ótimo tudo isso! Mesmo! Mas lembre-se: você também é beneficiado pelo sistema patriarcal, e alimenta o comportamento do Pedro. Então, se quer mesmo ajudar, que tal trocar "mas nem todo homem" por "vocês têm razão. Eu sinto muito. Conte comigo pra observar e corrigir isso aí."

E quanto ao início do texto, eu me enganei. Frases como "mas nem todo homem é assim" e "feministas culpam todos os homens pelo estupro, menos o estuprador, e colocam ele como o coitadinho da sociedade" não são vazias.

Elas estão cheias. De intenção. Intenção de se abster da conversa, intenção de encerrar a conversa, intenção de mudar o foco, intenção de dormir tranquilo enquanto a barbárie segue.

Agora que você sabe, é só escolher um lado.

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