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sábado, 19 de dezembro de 2009

Meu Deus, me dê a coragem

Forte, inteligente, firme... ímpar. Clarice é a mulher que revira o universo do avesso e tira o mais real dele para que a gente simplesmente desfrute.

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
meu pecado de pensar.

Clarice Lispector

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Amor

Já que o pessoal gostou de Vinicius, aí vai mais um... Não há como se cansar de Vinicius. Quem se cansa de Vinicius se cansou do coração.

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Soneto de Devoção

Essa mulher que se arremessa, fria

E lúbrica aos meus braços, e nos seios

Me arrebata e me beija e balbucia

Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia

Que se ri dos meus pálidos receios

A única entre todas a quem dei

Os carinhos que a nenhuma outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama

A miséria e a grandeza de quem ama

E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é o mundo! - uma cadela talvez

Mas na moldura de uma cama

Nunca mulher nenhuma foi tão bela.

Vinicius de Moraes

O tempo da leveza

E chega o tempo em que a presença do outro é apenas uma questão de capricho. E que ter o seu amor é nada mais que vaidade.
Chega o tempo, tão anunciado, em que um poema da Clarice sobre a saudade já não é mais sentido fisicamente. Que é mais fácil ser poeta, é mais fácil ser romântico, é mais fácil ouvir as músicas do Chico Buarque.
Sim, chega um tempo em que o pensamento não tem apenas um protagonista, fixo; tempo em que cada sensação é relacionada a um personagem diferente. Cada frase de amor procura um rosto.
E quando esse tempo chega, a alma pode até se confundir, mas o coração agradece.
O amor pesa, e só quem já amou muito tem a balança que permite compreender a gratidão do coração.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro, 1935
Tem coisa mais linda, mais sensível, mais incansável, mais real, mais profunda, mais bela, mais intensa, que a poesia de Vinicius?

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

É depressivo

Viver da nostalgia do que acha que foi no passado.

E também é depressivo perceber que se está usando expressões feias como "é depressivo".

E ter o desplante de expressar suas ideias mesmo sendo elas desnecessárias, é depressivo.

Auto-crítica (ou baixa auto-estima) publicada é depressivo também.

Onde?

Onde está minha alma esparsa?
Onde está minha flor-de-lis?
Onde andam os meus conterrâneos,
aqueles que outrora não reconheci?

Dentro de mim era tudo escuro
Os galhos dos meus tropeços gris
A vida me falava ao ouvido
e eu teimosa não queria ouvir

Onde está meu coração tão nobre?
Onde estão meus amores pueris?
Dentro de mim hoje tudo é passado

Dentro de mim a vida não mais canta.
Minhas poesias hoje são mais simples
Meu coração hoje não mais encanta.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Uma aprendizagem

Eles pareciam saber que o amor era grande demais e quando um não podia viver sem o outro, esse amor não era mais aplicável: nem a pessoa amada tinha a capacidade de receber tanto. Lóri estava perplexa que mesmo no amor tinha-se que ter bom senso e senso de medida. Por um instante, como se tivessem combinado, ele beijou sua mão, humanizando-se. Pois havia o perigo de, por assim dizer, morrer de amor.

Clarice Lispector - Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Reverência ao destino

Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.

Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.

Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.

Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.

E com confiança no que diz.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.

Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer ou ter coragem pra fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.

Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.

E é assim que perdemos pessoas especiais.

Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.

Difícil é mentir para o nosso coração.

Fácil é ver o que queremos enxergar.

Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.

Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.

Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"

Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.

Difícil é sentir a energia que é transmitida.

Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é querer ser amado.

Difícil é amar completamente só.

Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois.

Amar e se entregar, e aprender a dar valor somente a quem te ama.

Fácil é ouvir a música que toca.

Difícil é ouvir a sua consciência, acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.

Fácil é ditar regras.

Difícil é seguí-las.

Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.

Fácil é perguntar o que deseja saber.

Difícil é estar preparado para escutar esta resposta ou querer entender a resposta.

Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.

Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.

Fácil é dar um beijo.

Difícil é entregar a alma, sinceramente, por inteiro.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.

Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.

Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.

Difícil é ocupar o coração de alguém, saber que se é realmente amado.

Fácil é sonhar todas as noites.

Difícil é lutar por um sonho.

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.

Carlos Drummond de Andrade

Do avesso

E há também aquelas semanas em que não estamos voltados nem para o coração, nem para a razão, não há? Semanas em que estamos do avesso, em que estamos virados para dentro. Uns pela falta de trabalho, outros pelo excesso de pressão no trabalho. Em alguns momentos pela multiplicidade de escolhas. Em outros por não ter escolha alguma. Eu por não conseguir enxergar luz em nenhum dos múltiplos caminhos. Você por ter a luz e não conseguir se mover até ela.