Quem já esteve aqui no blog (recentemente rebatizado) e cuja presença deve se tornar mais frequente é um grande escritor que se define mais ou menos assim:
"Minha filosofia pode ser resumida em
duas frases latinas: "Tempus Fugit": o tempo foge, passa, tudo é
espuma...
E "Carpe Diem": colha cada dia como um fruto saboroso que
cresce na parede do abismo. Colha hoje porque amanhã estará podre.
Sonho em ter tempo para aprender a vagabundear."
Eu me identifico muito com esse cara. Em seus escritos ele sempre cita nobres nomes da literatura e da filosofia. Um de seus preferidos é Fernando Pessoa (e pseudônimos). Rubem Alves é psicanalista, o que me agrada bastante, pois nada como uma psicanálise misturada com a beleza da poesia.
Aí vai, portanto, o último texto dele que li. Para quem acha que está com todos os parafusos no lugar:
Saúde Mental
Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental.
Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista,
deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que
aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que
nada sabia. Eu me explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das
pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e
excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma.
Nietzsche, Fernando Pessoa, van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles,
Maikóvski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa
era dado à bebida. van Gogh se matou. Wittgenstein se alegrou ao saber
que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia.
Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakóvski
suicidou.
Essas eram pessoas lúcidas e profundas que
continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido
completamente esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa
condição em que as idéias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis,
sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus
lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo
falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado, nem é preciso dar uma
volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley
Valentine (se ainda não viu, veja o filme!), ou ter um amor proibido ou,
mais perigoso que tudo isso, que tenha a coragem de pensar o que nunca
pensou. Pensar é coisa muito perigosa...
Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas
demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e
idiotas de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os
protótipos da saúde mental. É claro que nenhuma mamãe consciente quererá
que o seu filho seja como van Gogh ou Maiakóvski. O desejável é que
seja executivo de grande empresa, na pior das hipóteses funcionário do
Banco do Brasil ou da CPFL. Preferível ser elefante ou tartaruga a ser
borboleta ou condor. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria
aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir
emprego. Mas nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou
depressão, com excessão do Suplicy. Andam sempre fortes e certos de si
mesmos, em passeatas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e
certezas.
Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.
Nós somos muito parecidos com computadores. O
funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação
de duas partes. Uma delas se chama hardware, literalmente coisa dura e a
outra se denomina software, coisa mole. A hardware é constituída por
todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. A software é
constituída por entidades espirituais - símbolos, que formam os
programas e são gravados nos disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O
hardware são os nervos, o cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o
sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas
que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o
que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo
espirituais, sendo que o programa mais importante é linguagem.
Um computador pode enlouquecer por defeitos no
hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso
hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que
virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou.
Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não
funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o
software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.
Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso de símbolos.
Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale
de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles
podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até
mesmo psicanalistas.
Acontece, entretanto, que esse computador que é o
corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu
hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois
não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os
poemas eróticos do Drummond e o corpo fica excitado.
Imagine um aparelho de som. Imagine que o
toca-discos e acessórios, o software, tenha a capacidade de ouvir a
música que ele toca, e de se comover. Imagine mais, que a beleza é tão
grande que o hardware não a comporta, e se arrebenta de emoção! Pois foi
isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei, no princípio: a
música que saía do seu software era tão bonita que o seu hardware não
suportou.
A beleza pode fazer mal à saúde mental. Sábias,
portanto, são as empresas estatais, que têm retratos dos governadores e
presidentes espalhados por todos os lados: eles estão lá para exorcizar a
beleza e para produzir o suave estado de insensibilidade necessário ao
bom trabalho.
Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde
mental, vai aqui uma receita que, se seguida à risca, garantirá que
ninguém será afetado pelas perturbações que afetaram os senhores que
citei no início, evitando assim o triste fim que tiveram.
Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e
comoventes. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente
perigosos. Já o roque pode ser tomado à vontade, sem contra indicações.
Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta
literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do Dr.
Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo
efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente
sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o
nosso software pensará sempre coisas iguais. A saúde mental é um
estômago que entra em convulsão sempre que lhe é servido um prato
diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têm sempre as
mesmas idéias. Essa cotidiana ingestão do banal é condição necessária
para a produção da dormência da inteligência ligada à saúde mental. E,
aos domingos, não se esqueca do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.
Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila,
embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não
perceberá o quão banal ela é. E, ao invés de ter o fim que tiveram os
senhores que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus
sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já
não mais saberá como eles eram.
(Provavelmente escrito em 1994)
Rubem Alves
(Provavelmente escrito em 1994)
Rubem Alves
Que bom que você voltou a postar nesse blog, já estava sentindo falta. E não poderia ter começado melhor, ein?! Grande Rubem Alves, sempre com textos excelentes!
ResponderExcluirPoste mais! =)
Vê se aparece mais vezes por aqui! Quem sabe você não me indica outros textos dele que você goste pra eu postar? Beijo!
ExcluirO choque de realidade da saúde mental. E mais uma vez, se percebe que é inviável nossa pretensão do domínio mental, que se quer, é garantia de qualidade mental haha.
ResponderExcluirSheero, domínio e entendimento mental talvez sejam inclusive o oposto de qualidade mental nesse caso, certo? Ou, o conceito de saúde mental está tão distorcido que aqueles que realmente têm saúde mental (aquela filosófica e baseada no real entendimento das coisas), automaticamente saem do padrão e são considerados loucos, são excluídos e, de tão solitários em seus mundos, preferem sumir daqui.
Excluirisso me conforta, muito. hahaha. Leia o Elogio da Loucura, Erasmo de Rotterdam, vc vai amar.
Excluirhahaha calma que tamo junto! Obrigada pela indicação! Vou ler com certeza!
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